Artigo da Missão Paz explica porque é necessária uma nova lei de migração
- Missão Paz
- 25 de nov. de 2016
- 4 min de leitura

O Brasil possui uma dívida histórica quando o assunto é a consolidação de uma política integral de Estado para as migrações, que seja coerente com a busca de uma sociedade justa, livre e democrática; que respeite os direitos humanos e reconheça a contribuição cultural, econômica e social dos imigrantes e refugiados que chegam e se estabelecem no país. Ao pensarmos na verdadeira efetivação dos Direitos Humanos dos migrantes no Brasil, somos levados a refletir sobre a necessidade de uma nova Lei de Migração.
Há anos, as dificuldades enfrentadas pelos migrantes no país são apontadas pelas organizações da sociedade civil que atuam diretamente com essa população. São dificuldades, em grande parte, reforçadas pelo o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980) que representa um dos fortes sistemas jurídicos estabelecidos pela ditadura militar (1964-1985). Tal Estatuto, ainda vigente, parte do pressuposto de que as migrações representam um risco à segurança nacional e ao trabalhador brasileiro. Além disso, encara o imigrante como ameaça à sociedade e impõe uma série de restrições às liberdades individuais, tais como o direito à participação política, sindical e associativa. Portanto, trata-se de uma lei que não dialoga com o rol de direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e com o regime internacional dos direitos humanos.
Ademais, o Estatuto do Estrangeiro possui alto grau de burocratização que dificulta a regularização migratória da pessoa que entrou no território nacional sem o visto ou que se tornou irregular depois da expiração deste. Cabe ressaltar que a irregularidade migratória implica diretamente no não acesso aos direitos básicos. Isto deixa os migrantes numa condição ainda mais vulnerável, sobretudo no que se refere à exploração da sua força de trabalho. Assim, permite que diversos empregadores se aproveitem da condição de indocumentados e os submetam a trabalhos degradantes ou análogos à escravidão. Neste sentido, pensar em uma nova lei de migração é pensar em incluir os imigrantes e refugiados em políticas públicas que lhes integre de maneira digna na sociedade brasileira.
Assim, podem contribuir com o Brasil para além de sua força de trabalho e do recolhimento de impostos. Pois, há uma admirável riqueza a partir da troca intercultural com os migrantes que chegam para salvaguardar suas vidas e de seus entes queridos ou em busca de mudanças no destino que lhes é fadado no país de origem. Para isso, é indispensável que os princípios de não discriminação e de igualdade de direitos, estabelecidos pelo direito internacional, sejam cumpridos em igualdade perante a lei e de maneira a garantir o acesso a dois aspectos fundamentais: regularização migratória e acesso à justiça. O primeiro, parte da ótica de que da mesma maneira que Wos nacionais devem obter documentos para ter acesso a Por que uma nova lei de migração para o Brasil? Letícia Carvalho - assessora de advocacy da Missão Paz fique por dentro direitos, a regularização do migrante faz-se logo na entrada para a garantia efetiva dos direitos que lhes devem ser assegurados. E, se há de fato o princípio da igualdade previsto pela Carta Maior, logo o direito de se regularizar deve ser garantido através de mecanismos que sejam claros e acessíveis a todos como uma obrigação do Estado e um direito do migrante.
Já o segundo aspecto, o direito de acesso à justiça, possui relevância nos processos migratórios, especialmente àqueles a respeito da permanência do migrante no país, como as decisões sobre a repatriação (devolução do migrante em situação de impedimento ao país de sua procedência ou nacionalidade), deportação (aplicada ao migrante em situação migratória irregular no território nacional) e expulsão (aplicada ao migrante condenado), devido ao enorme impacto que essas medidas de força podem ter sobre os direitos dessas pessoas e de seus familiares. A atenção a este aspecto deve se dar a fim de evitar qualquer devolução que coloque em risco a segurança ou integridade física de qualquer pessoa. Ademais, reivindica-se que o controle migratório seja realizado por funcionários civis capacitados para lidar com as pessoas migrantes de forma não discriminatória. Esta é uma demanda histórica do movimento de defesa dos direitos dos migrantes no Brasil. A política migratória deve ser sensível às especificidades de cada situação, à vulnerabilidade social e econômica dos migrantes.
E deve partir de uma perspectiva inclusiva que tenha como objetivo a integração dessas pessoas à sociedade e a garantia do seu acesso pleno a direitos. Nesse sentido, é também antiga a percepção de que a Polícia Federal, embora possua importantes competências em matéria de segurança, que exigem a sua presença nos pontos de entrada e saída do país, não é a instituição mais adequada para administrar as políticas de autorização de entrada e permanência de migrantes no Brasil. Pois a migração, na sua essência, não é uma questão de segurança. Ao conhecer os principais problemas do Estatuto do Estrangeiro, suas implicações negativas na vida dos migrantes, e os princípios de Direitos Humanos para o trato com os migrantes no país, há anos as organizações da sociedade civil e membros de instituições acadêmicas tem pautado a questão em diversos espaços de debates sobre o tema.
Neste prisma, no ano de 2013, o Projeto de Lei do Senado (PLS 288/2013) trouxe novos paradigmas aos direitos dos migrantes no Brasil. O PLS apontou para mudanças necessárias no sentido de que a Lei observe as garantias dos direitos dos migrantes no país. No ano seguinte, a Conferência Nacional de Migrações e Refúgio (COMIGRAR), organizada pelo Ministério da Justiça, proporcionou a realização de diversas atividades que trataram da importância de uma nova Política Migratória, inclusive com a colaboração dos migrantes residentes no Brasil. O avanço dos trâmites institucionais se deu com as contribuições da comissão de especialistas do Ministério da Justiça, incorporadas ao texto, e o envio do PLS à Câmara dos Deputados em agosto de 2015, onde passou a ser designado PL 2516/2015. Vale observar que a sociedade civil acompanhou todas as etapas, inclusive com proposições, até o texto final adotado em julho de 2016 pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Compreendem-se os avanços instituídos no PL em questão. No entanto, há pontos sensíveis que ainda são obstáculos às garantias dos direitos dos migrantes, de maneira que alterações ainda são necessárias, para que haja a consolidação do paradigma de direitos humanos. Estes direitos possibilitam a coerência entre os princípios e as práticas contempladas no texto, bem como viabilizam que o Brasil se torne um exemplo de política migratória inclusiva, cultivando a seu favor, todo o potencial da mobilidade humana internacional.
*Artigo publicado no Boletim Vai e Vem do SPM (Serviço Pastoral do Migrante).
Kommentit